Mais do que ovos

Assistir ao vídeo que um grupo de playboys de Ipanema postou na Internet causou-me consternação. A produção amadora (diga-se de passagem, bem editada ao estilo Pânico na TV) mostra um grupo de adolescentes tacando ovos de uma varanda em plena Avenida Vieira Souto, ponto mais nobre de Ipanema, no Rio de Janeiro. Ao tacarem os ovos, que caem na rua, em carros e pedestres, o grupo gargalha e por vezes se esconde.

Na segunda parte do vídeo, o grupo de herdeiros entrevista outros socialaites, adultos, que contam seus casos de "tacar coisas pela janela". Ouve-se de tudo, de gente que taca vassoura, a diretor de televisão que disse já ter jogado muito ovo podre em "vagabundas" de São Paulo.

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Em primeiro lugar, a crítica ao vídeo não é moralista pura e simples. Tacar coisas pela janela e ver como caem deve ter sido uma das grandes diversões de crianças e adolescentes, algo que passa ao ser atingida a idade de, sei lá, quatorze anos (ou momentos de sobriedade, seja qual for a idade). O que impressiona é o foco dos valores que possui, de uma forma geral, a elite de um lugar. A organização social é feita de tal forma que há uma esfera dividindo o que é visto como diversão inocente pela elite, e o que é tido como vandalismo, quando feito pela plebe. A condição social, mais social do que econômica, parece ditar todo um componente de fatos sociais que regem tal comportamento.

Isto posto, recordo-me da divisão social no Haiti, país mais pobre das Américas, emancipado por escravos (talvez a única colônia com tal histórico). Lá, a miséria é quase absoluta, mas há os mesmos condomínios e divisões de classes que notamos no Brasil. A distinção, vejam só, é que, dentre o povo negro haitiano, os que tem pele mais clara subordinam os de pele mais escura. É uma espécie de direito incontestável, arianista, que julga os negros inferiores aos mulatos (negros mais claros, não caucasianos), e que portanto devem servi-los.

Não penso que a elite econômica do Haiti represente alguma coisa globalmente. Não em um país cujo grande potencial econômico é a exportação de bananas. Por isso digo que a condição é mais social do que econômica. É uma relação de poder, em que, por um lado ser notoriamente tido como em superior numa escala, delega-se o direito da subordinação social. Na medida em que o respeito deve ser recíproco, e apenas delegado entre concidadãos, do mesmo estrato social (isso teorizado desde Aristóteles), todos aqueles que não pertençam à mesma casta (sic), são dignos de todo tipo de coerção por parte da elite.

Voltando aos ovos, cada vez que caiam na rua após serem atirados, os jovens extasiavam-se em gargalhadas. Não havemos de supor que um ovo caindo no chão seja engraçado, de fato não o é. A questão aí embutida é a transgressão social, o que é muito mais complexo. A risada se dá pela sensação de que se está transgredindo uma regra de outrem, não a sua própria, e por isso sentem-se poderosos. Talvez haja um paralelo com a sensação dos cleptomaníacos -- não sei, deixo isso para os estudantes de Psicologia.

O fato é que o gozo é exposto e, além disso, há uma espécie de legitimação da sua posição social. Vê-se isso na declaração infeliz do diretor de TV -- semelhante àquela dos jovens da Barra, que agrediram uma doméstica por supostamente pensarem ser ela uma prostituta, essa sim digna de agressões -- e na reação que o grupo teve quando começou a ser sabatinado no Orkut após a postagem do vídeo no site
Kibeloco: eles estariam "causando". Aquela coisa meio Paris Hilton de aparecer na mídia, "causar".

A crítica que os leitores do Kibeloco têm feito no Orkut diz respeito ao desperdício de comida, algo acintoso com tanta gente passando fome no mundo. Ora, isso sim é um chavão moralista, meio hipócrita. A agressão que é sentida pelo vídeo talvez não tenha sido traduzida pelos usuários do site, que extravasaram-na nesta forma. De fato é um mau exemplo tacar alimentos, mas não é isso que influi em igualdade social. O tapa na cara de quem assistiu ao vídeo é a questão de ser legitimado um comportamento mesquinho e sádico, auto-afirmação de superioridade.

Claro que isso não é falha no caráter dos garotos da Zona Sul, mas um comportamento reproduzido. A elite da Vieira Souto, assim como a do Haiti, age seguindo seus fatos sociais, os comportamentos que herdam de tradições reguladas pela sociedade. Não fosse isso, fosse o comportamento coibido, haveria qualquer espécie de repreensão. Enquanto criança (quando o impulso de tacar coisas é natural), haveria a repreensão em forma de diálogo, respeito mútuo e obrigações. Enquanto adultos, a responsabilidade legal. Pior, muitas vezes pior do que os ovos, são os comentários e os escárnios.

Lembro de um livro terrível que li a alguns anos, um best-seller de uma patricinha francesa chamado HELL. Numa narrativa tragicômica digna de um best-seller (do tipo de livro de banca de jornal), a protagonista faz um romance supostamente biográfico, mostrando a vida vazia da elite da elite francesa, das orgias sexuais no início da adolescência ao uso de todo tipo de drogas.

Não acho que isso tenha a ver com o caso do vídeo dos ovos, de modo algum, mas o que eu tirei dessa leitura fantasiosa, foi a questão dos valores que a elite possui. Não pensem que é devaneio, hoje somos coagidos a consumir: consumo é a razão para a felicidade. Só que, como cada dia os produtos são mais descartáveis, o êxtase só virá enquanto durar uma ínfima parte de um momento efêmero. É assim na sensação de comprar um relógio, ou de tomar um porre, e só dura até o próximo ciclo. A felicidade é vendida assim. E, segundo a autora do romance, como a elite da elite francesa pode consumir qualquer coisa que seja possível nesse mundo, a vida se torna vazia, sem sonhos ou objetivos. Então, parte-se para o comportamento de limite.

Enfim, inversões de valores.

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